quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

2003, o ano em que foi decidido incinerar o futuro



2003, o ano em que foi decidido incinerar o futuro

O atual movimento que contesta a incineração tem sido injustamente acusado, por algumas pessoas, na maioria mal informadas ou de curta memória, de só agora se manifestar, após a decisão já ter sido tomada. Digo injustamente pois a contestação, por parte da Quercus e dos Amigos dos Açores, à incineração não começou este ano, mas sim quando pela primeira vez se falou em surdina na construção de uma incineradora para queimar resíduos sólidos.

Para avivar a memória e dar a conhecer aos mais novos alguns factos que alguns querem que caiam no esquecimento, neste texto farei referência a alguns episódios ocorridos sobretudo no ano de 2003.

Mas, importa, também, lembrar que, tal como acontece com a energia nuclear em que o segredo ou a falta de transparência é a alma do negócio, no caso da ilha de São Miguel terá sido a incineração a dar cabo de um processo louvável de participação da sociedade iniciado, a 22 de outubro de 1998, com a criação da Comissão de Acompanhamento para a Gestão dos Resíduos Sólidos da Ilha de São Miguel, da qual faziam parte, entre outros, a Universidade dos Açores, a Câmara do Comércio e Industria de Ponta Delgada e a Quercus, representada por Veríssimo Borges. Os Amigos dos Açores só foram convidados a integrar a referida Comissão, em Maio de 2002, por iniciativa do autarca Rui Melo, então Presidente do Conselho de Administração da AMISM.

A 26 de outubro de 2002, de acordo com notícia do Diário dos Açores, Rui Melo anunciou que para responder ao “esgotamento do aterro sanitário e de ocupação de terrenos escassos numa ilha”, a AMISM estava a “desenvolver estudos para um sistema integrado de resíduos, dos quais depende a avaliação dos argumentos a favor e contra a instalação de triagem, de digestão anaeróbica e de valorização energética”.

Depois de várias notícias dando conta da intensão da AMISM de recorrer à queima de resíduos, aquela organização, a 12 de junho de 2003, num encontro com a Quercus, reafirma que vai avançar com “uma solução combinada de estação de triagem, aterros e uma central de valorização energética, por incineração de resíduos de biomassa residual”.

Faço um parenteses para referir que o funcionamento de uma incineradora não pode violar às Leis da Física e infelizmente, para os seus defensores, todas as incineradoras não produzem energia elétrica de forma eficiente. Pelo contrário, são fontes de desperdício de energia, pois para além de queimarem resíduos com baixo poder calorífico, destroem grandes quantidades de materiais recicláveis e reutilizáveis.

Sensivelmente um mês depois, a AMISM anuncia a candidatura a fundos comunitários de um projeto, no valor de trezentos milhões de euros (300 000 000 €), que incluía uma estação de triagem, aterro e uma central de valorização energética por incineração.

A 16 de julho de 2013, o Açoriano Oriental anuncia que a Quercus apresentou queixa à Comissão Europeia, tendo Hélder Spínola afirmado que o processo de incineração estava condenado “porque não terá o apoio da União Europeia”. De acordo com esta notícia o valor apontado por Rui Melo era de aproximadamente 100 milhões de euros.

A posição de alguns ambientalistas revela alguma ingenuidade ao acreditarem que a hipócrita Comissão Europeia poderia ser o travão à implementação de políticas ruinosas. Para a burocracia europeia o que conta mais são os negócios para alguns, ficando a maioria das pessoas para segundo plano.

No dia 18 de julho de 2003, o jornal “Expresso das Nove” anuncia que a incineradora de São Miguel arrancaria em 2007, sendo o processo testado em 2006.

A 20 de julho de 2003, a Quercus volta a insistir numa proposta alternativa que, segundo o “Correio dos Açores” passa por “um conjunto integrado de medidas que refletem a chamada política dos três “r” nomeadamente, redução reutilização e reciclagem”. Segundo a Quercus o custo da sua alternativa seria de 25 a 30 milhões de euros, portanto muito mais barata que a solução apresentada pela AMISM.

Passados cerca de 14 anos, o assunto voltou a estar na ordem do dia, mas com novos e mais protagonistas. Dos “antigos”, alguns renderam-se aos encantos do consumismo e outros, infelizmente, já não estão entre nós, como é o caso de Veríssimo Borges que pela sua generosidade e dedicação à causa ambiental continua a fazer muita falta.

Teófilo Braga
(Correio dos Açores, 31162, 22 de fevereiro de 2017, p. 14)